Rio 2010 – etapa superior do paracapitalismo tropical


Luiz Ricardo Leitão / Brasil de Fato - Mariátegui
Foto:Reuters
18/12/10


AS IMAGENS ainda estão bem vivas na memória de todos: dezenas de soldados do tráfico fugindo aos magotes por uma estrada de terra no alto da Vila Cruzeiro, rumo ao Morro do Alemão, uma das áreas mais miseráveis do Rio. Jamais poderiam estrelar um filme de gângster dos grandes estúdios de Hollywood: a maioria vestia apenas short e sandálias Havaiana –e seu único produto de valor eram as armam que traziam a tiracolo, com o selo das mais lucrativas indústrias do mundo globalizado.

Exatamente cem anos após a histórica Revolta da Chibata, quem são esses párias que militares e governantes tratam de aniquilar? Não lembram, decerto, os marujos revoltosos que, sob a liderança de João Cândido – o mestre-sala dos mares –, exigiram o fim dos maus-tratos que lhes infligiam os oficiais da Marinha. Ao contrário: são apenas a quinta geração de uma (pseudo)organização que um dia, nas celas da Ilha Grande, decidiu lutar por “paz, justiça e liberdade”, inspirada em certas lições de marxismo-leninismo que os presos políticos da ditadura legaram aos fundadores do Comando.

Nos anos 1970 e 1980, com estampa de justiceiros sociais, figuras como José Carlos do Reis Encina, o Escadinha, ocuparam o imaginário popular. Eram os tempos românticos da bandidagem, que proibia o roubo de trabalhadores e promovia assaltos espetaculares a bancos, iniciativa que, a juízo da massa, não merecia censura, já que “ladrão que rouba ladrão [e que ladrão!] tem cem anos de perdão”... Esculachar um operário (coisa que o “milagre econômico” do regime já fi zera à exaustão) era uma covardia; confiscar parte dos exorbitantes lucros que os banqueiros acumulavam à custa da nossa mais-valia e deixar alguns dividendos da operação com a comunidade jamais seria visto como um crime nos morros cariocas.

Não há mais Robin Hoods em Bruzundanga. Em perversa sintonia com a era neoliberal, regida pelo deus Mercado e sob o decálogo do Consenso de Washington, os “marginais” de hoje são meros delinquentes alucinados, às vésperas de mais um sinuoso salto de qualidade no paracapitalismo tropical. Como já cantara há décadas o clarividente Chico Buarque, agora é a vez do malandro profissional, “com aparato de malandro oficial” ou “candidato a malandro federal”. Descalço e de bermuda não pode: carece de terno, gravata e coisa & tal.

No Rio, a malandragem profissional tomou conta do pedaço. De olho nos mirabolantes negócios da Copa 2014 e das Olimpíadas 2016, o Estado e as milícias retalharam a Cidade Maravilhosa em zonas de atuação. O cinturão em torno dos parques esportivos (fonte de infinitos lucros para as empreiteiras de turno) fi cará com a turma oficial: lá surgiram as UPPs e outras pirotecnias de compensação social. Da Barra da Tijuca ao Maracanã, do Engenhão à Marina da Glória, a “paz” estará garantida pelos briosos governantes locais. Nos grotões da Zona Oeste, as milícias se encarregam da “segurança pública”, da entrega de gás e do “gatonet”, entre outros serviços “comunitários”. (O que sobrou para o velho tráfi co? A reação desmedida, um mês após as eleições, indica que precários acordos eventualmente costurados antes do pleito não foram cumpridos à risca...)

A mídia abençoou o pacote. Os helicópteros da Vênus Platinada acompanharam as incursões à Vila Cruzeiro e ao Alemão online. A violência espetacularizada, aliás, rendeu-lhe o dobro de audiência no horário vespertino (29 pontos, em média,). O Rio 2010, de fato, é apenas um prenúncio do que vem por aí; aguardem a próxima atração (plim, plim). Ciente de que as tragédias da história só se repetem como farsa, este humilde cronista prefere tão somente saudar “o navegante negro que tem por monumento as pedras pisadas do cais...”


Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de O campo e a cidade na literatura brasileira e Lima Barreto: o rebelde imprescindível.

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