Pablo Stefanoni: “O Brasil é ao mesmo tempo imperialismo e motor imprescindível para a integração”


O economista e diretor da versão boliviana do Le Monde Diplomatique, faz um balanço da política sul-americana

Elena Apilánez - Vinicius Mansur / Mariátegui
07/01/11


Passados mais de dez anos da ascensão de presidentes de esquerda na América do Sul, o economista Pablo Stefanoni, diretor da versão boliviana do Le Monde Diplomatique, é cético com relação às transformações trazidas por eles ao continente e relativiza a existência de governos de esquerda “radicais” e “moderados”.

Traçando um panorama da conjuntura política do continente, o ex-assessor de comunicação do governo Evo Morales prevê sérias limitações para o crescimento da Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas) e muitas possibilidades para a Unasul (União das Nações Sul-Americanas). Na entrevista a seguir, Stefanoni analisa, ainda, a política na Argentina pós-Kirchner, destaca o surgimento de uma direita reciclada na Colômbia e no Chile e debate o papel do Brasil na região.

Brasil de Fato – Como você avalia a categorização dos governos sul-americanos entre esquerda radical, com Bolívia, Venezuela e Equador, e esquerda moderada, liderados por Brasil e Argentina?

Pablo Stefanoni – Esse esquema tem aspectos reais, mas há que relativizá-los. Primeiro, a radicalidade assumida, muitas vezes, não se dá porque os movimentos sejam particularmente mais radicais, senão porque a trajetória institucional e política foi diferente. Os três países considerados de esquerda radical tiveram a implosão do sistema partidário com forte mobilização popular, e era normal que houvesse uma grande demanda por refundação do país, do sistema político. No caso de Uruguai, Brasil e, sobretudo, Chile, a esquerda ganha em um contexto de desmobilização. Além disso, há continuidade institucional e o sistema de partidos continua o mesmo. Em segundo lugar, essa esquerda radical necessita da outra esquerda. Nos momentos-chave, Lula apoiou a Venezuela, como na greve petroleira, na crise da Bolívia houve um apoio importante da Unasul etc. Por isso, se valorizava a vitória de Dilma Rousseff [nos países da América Latina governados pela esquerda], mais do que qualquer debate interno, com a ideia de manter a correlação de forças. Em terceiro lugar, esse esquema supõe que uma esquerda é socialista e outra não, mas, vendo as políticas públicas concretas, nenhuma é socialista. Nem Venezuela nem Bolívia estão avançando rumo a um projeto pós-capitalista. Claro, há diferenças no trato com os EUA, no papel que joga o Estado, mas, vendo o que de fato mudou, o socialismo ainda é bastante retórico. E há muitas coincidências, por exemplo: a legitimidade do Evo não é tão distinta da do Lula. Uma mescla de autoidentificação popular com um líder que surgiu de baixo e políticas sociais. Inclusive, o Bolsa Família é mais radical, por sua abrangência, do que a política de bolsas da Bolívia, que é mais fragmentada.

O senhor não acha que a Venezuela, por exemplo, se diferencia dos outros com suas nacionalizações e políticas públicas que caminham para a transição ao socialismo?

Há tentativas, testes, mas com muitos problemas de eficácia. Promove-se cooperativas, conselhos comunais. Claramente, há um nível de participação popular maior do que havia antes de Chávez. Entretanto, os balanços sobre a geração de uma participação de baixo são complexos. Os conselhos comunais se ocupam de questões bastante locais e vinculadas à falta de Estado nos bairros. Começaram a falar menos de política nacional e aceitar os antichavistas nos conselhos, sempre e quando haja um pacto de não falar muito de política. Há também os conselhos em bairros de classe média alta de Caracas, que são antichavistas, mas que usaram essa fórmula. Quanto à economia, os números mostram que a privada não diminui em relação à estatal. E ainda há dificuldades enormes, para além da vontade do governo, de se pensar uma agenda pós-petroleira. Nisso, coincidem todos. O rentismo [referência à dependência da economia Venezuela da renda do petróleo que exporta] não distribui exatamente a riqueza, porque capta uma renda do mercado internacional e gera uma cultura não do trabalho, mas de como agarrar-se a essas fatias. É bom que se democratize [a renda], mas, depois, o problema sério é pensar um modelo produtivo. O problema venezuelano, hoje, talvez não seja tanto como transitar ao socialismo, mas a essa agenda, ainda que seja a médio prazo, porque não é fácil. Não é que o Chávez não tem vontade: inclusive, ele levou o Instituto de Tecnologia Industrial da Argentina para o país.

O senhor vê uma disputa pela liderança do continente?

Houve uma luta entre Brasil e Argentina, mas a Argentina perdeu. A Venezuela não tem condições, porque o Brasil já não joga em nível sul-americano, mas mundial, inclusive associado ao Bric [Brasil, Rússia, Índia e China]. Ninguém está pensando em competir com o Brasil, que aposta num rumo claro e complexo. O Brasil mescla um “imperialismo” com o papel de motor imprescindível para a integração regional. O Lula viaja com 200 empresários e, quando concede algum crédito, este país tem que contratar uma empresa brasileira. O Brasil é como um monstro ao lado de um monte de economias pequenas, que não têm visão muito clara sobre o que fazer com o Brasil. Há uma atitude de denunciar, como fizeram na Bolívia com a Petrobras, com a Odebrecht no Equador, ou a relação complicada com Itaipu, no Paraguai, mas, depois, chega o Marco Aurélio Garcia [assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais na gestão Lula] e tudo se ajeita.

Qual futuro o senhor vê para a Unasul e a Alba?

A Alba não avançou porque uma integração ideológica é mais complexa, depende de que os governos continuem. A Unasul não depende tanto dos governos coincidirem em tudo. A Bolívia não tem muitas relações com a Nicarágua ou Honduras. Ou seja, não está muito claro qual é o papel da Alba além do alinhamento político. É interessante que esses países possam jogar um certo papel juntos, mas a Alba não deve ser uma alternativa para outras vias de integração. A Unasul avançou muito mais rápido e existe essa coisa de que onde entra o Brasil se avança em nível diplomático, não? Quando o Brasil disse não à Alca, acabou a Alca.

Qual o impacto da morte de Néstor Kirchner para a política argentina?

A oposição fazia mais oposição ao Kirchner, que era uma espécie de copresidente, do que à própria Cristina. Kirchner era o grande disciplinador do peronismo e isso era muito necessário às vezes. Cristina era a presidente da nação e ele do peronismo. Então, temos que ver como ela vai operar isso. Pelas características meio necrófilas, a morte dele fortaleceu Cristina, pois recuperaram toda a figura de Kirchner, com a tentativa de torná-lo um mito, alguém que morreu em combate contra um monte de inimigos, corporações... o velório foi bem político. Ele recuperou todo um discurso e mística dos anos 1970, aproveitando que foi militante da juventude peronista, reativou uma parte de sua biografia muito distante. Porque, na verdade, Kirchner, nos anos 1990, apoiou basicamente o programa neoliberal. Na ditadura, ele era advogado que comprava casas de arremate, aproveitando uma lei de indexação feita pelo governo militar, e é nessa época que aconteceu sua acumulação. Ele tinha um patrimônio declarado de 14 milhões de dólares. Morreu à frente nas pesquisas para as próximas eleições pra presidente, com boa possibilidade de ganhar no primeiro turno. Kirchner não pensava a política como utopias, pensava o poder em seu sentido duro, construir dependências, interesses, redes. Então, há que se ver se Cristina consegue manter esse efeito gerado pela morte do marido. Tampouco há bons candidatos da oposição, além de haver uma parte dos votantes que se tornam “antiantikirchneristas”, ou seja, um rechaço à oposição sem ser kirchneristas. É o que acontece com tantos governos populares, cujas oposições são inapresentáveis. E isso dá vida a Cristina.

E quanto aos países que estão à direita?

[Os presidentes] Juan Manuel Santos, na Colômbia, e Sebastián Piñera, no Chile, surpreenderam um pouco porque se mantiveram olhando para a América Latina, mais do que se esperava. Deram início a uma direita muito mais hábil, pragmática, empresarial, menos conservadora em uma série de temas, inclusive morais. Uma direita parecida à nova direita europeia de [Nicolas] Sarkozi [presidente da França]. Não quero dizer que os conservadores não estão com Piñera, mas ele é liberal, não é pinochetista. Quando seu embaixador na Argentina defendeu Pinochet, ele o retirou 24 horas depois. Santos surpreendeu porque se esperava que fosse uma mera continuidade de Álvaro Uribe [presidente que o antecedeu], mas ele mostrou mais flexibilidade, com a Venezuela, por exemplo. Há razões econômicas também, porque a Venezuela começou a importar alimentos da Argentina e do Brasil. Mas ele ainda prometeu reforma agrária, devolvendo as terras que os paramilitares tomaram de camponeses. Não sei se o fará e não é que ele seja menos de direita, mas se adaptou mais a certas coisas.

E com relação às Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia?

Existe uma possibilidade que a Unasul contribua. De fato, as Farc pediram que Dilma participe como mediadora, apelando um pouco para o seu passado guerrilheiro. O Brasil pode jogar um papel importante nisso, algo que era impensável há dez anos. Mas as Farc são o grande obstáculo para que a esquerda possa disputar algo na Colômbia.

E o Peru?

Aí não se sabe, porque [o presidente] Alan García está de saída e todos creem que o Apra [Alianza Popular Revolucionaria Americana, seu partido] também. Mas o Peru é um pouco surpreendente, porque há alguns dias a relação com a Bolívia era malíssima e, agora, o Peru está deportando os prófugos da Justiça boliviana. Aceitaram também fazer um acordo sobre o mar. E a esquerda ganhou as eleições da capital Lima, apesar de parecer um pouco desarticulada para desafios mais sólidos. Para as próximas eleições, há cinco candidatos que estão com aproximadamente 20% dos votos cada um e dizem que o Apra não ganharia um segundo turno. E olha que a economia do Peru está crescendo 10%.



Pablo Stefanoni é economista e jornalista argentino radicado em La Paz desde 2003. Foi assessor de comunicação do governo Evo Morales. Atualmente, é diretor da versão boliviana do Le Monde Diplomatique e faz doutorado sobre a história das ideias do indigenismo.

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