Brasil: A desmistificação do cangaço


Angélica Lovatto / Mariátegui
05/08/11


Nada mais prazeroso que fazer a resenha de um livro que em quatro meses esgotou sua primeira edição. Principalmente por tratar-se de um ensaio de interpretação histórica. Luiz Bernardo Pericás brindou-nos com uma pesquisa apurada, sobre um tema complexo, escrevendo um texto instigante.

O cangaço é um tema controverso. Objeto de teorias e interpretações, muitas vezes conflitantes, foi também alvo de paixões e ódios. O autor anuncia que sua intenção não é ser polêmico. Mas o livro está provocando excelentes polêmicas. Isso porque, tratando das relações entre coronelismo e política, cangaceiros e banditismo no Nordeste, uma das principais teses apresentadas é a de que o cangaço não lutava para reconstituir ou modificar a ordem social sertaneja. Alguns dos estudos sobre o cangaço insistiram nessa direção, através da seguinte lógica: supunha-se que os bandoleiros fizessem parte da população pobre, logo defendiam essa população. Inferia-se que, se a ordem social era a do mando dos coronéis – que exploravam e oprimiam a população pobre – então os cangaceiros, pela lógica, combatiam os coronéis e queriam mudar aquele estado de coisas. A pesquisa de Pericás aponta o inverso: os cangaceiros não lutavam em prol das causas populares e, ao invés de combaterem, mantinham ligações com os chamados coronéis: “O que se pode afirmar é que os cangaceiros não lutavam, deliberadamente, para a manutenção ou para a mudança de nenhuma ordem política” (p.188). E conclui: “Eles lutavam, isso sim, para defender seus próprios interesses”. (Ibidem).

Para demonstrar essa tese, o autor organiza a exposição de sua pesquisa em nove meticulosos capítulos, que dão ao leitor a possibilidade de acompanhar cada passo de sua coleta de dados e, ao final do livro, quem está lendo sente que – se ainda quiser discordar da tese principal – vai ter que, pelo menos, dispor-se a realizar um trabalho tão ou mais apurado. A edição da Boitempo, muito bem cuidada como sempre, traz outros atrativos que complementam e dão prazer à leitura: um Caderno de imagens e uma seção de Documentos, que não só ilustram como fundamentam as afirmações feitas. De muita utilidade é também uma Tabela de conversão de mil-réis em dólares, que facilita a compreensão dos aspectos econômicos. A relação das fontes consultadas também impressiona, pois o autor não só leu sobre o cangaço e temas correlatos, mas conversou com pesquisadores e estudiosos do banditismo rural nordestino. Viajou pela região do cangaço, refazendo a trajetória dos bandos. Por fim, passou um ano pesquisando como Visiting scholar na Universidade do Texas (Austin, EUA), que possui uma das maiores bibliotecas sobre temas latino-americanos. Ali encontrou informações e documentos sobre o cangaço no Brasil que – paradoxalmente – não estavam disponíveis no próprio país.

O recorte do estudo vai de 1890 a 1940. Pensando na história brasileira, o cangaço existiu num período recheado de transições fundamentais: assistiu à passagem da Monarquia à República, viu nascer o processo de industrialização, teve seu auge nos anos 1920, viveu a crise de 1929, sobreviveu – por algum tempo – aos impactos da Revolução de 1930, quando finalmente entrou em colapso, no início dos anos 1940. A pesquisa analisa a presença de cangaceiros numa região específica: o sertão e o agreste. Pericás questiona uma visão homogênea do Nordeste, particularmente nestas duas regiões, mostrando que em meio à pobreza – sem dúvida predominante – havia cordões de prosperidade. Foi justamente nestes setores prósperos que observou-se a maior incidência do cangaço. Outra novidade foi o recorte da pesquisa para além de Lampião, incorporando cangaceiros de outras épocas.

No início da leitura, estão disponíveis as discussões sobre a teoria do banditismo social. Considero este capítulo importante, pois dá ao leitor condições de acompanhar uma pré-discussão sobre o cangaço. Pericás contesta a tipologia básica de “banditismo social”, que em seu entendimento é bastante inexata – no caso específico do cangaço – pois não se pode enquadrar um número significativo de tipos homogêneos de marginais dentro de um sistema amplo coerente. O ideal, neste caso – defende o autor – é a interpretação social de eventos históricos, principalmente em se tratando de “delitos”. Daí sua opção pelo estabelecimento de uma análise factual e empírica rigorosa.

Em seguida, mergulha-se diretamente num capítulo vital para o entendimento posterior de todo o conjunto de argumentações que compõem a tese defendida: a explicitação das origens de classe e as motivações para a entrada no cangaço. Nele, demonstra-se que apenas a “arraia miúda” dos bandos cangaceiros tinha origem popular. As lideranças eram de estratos mais altos da sociedade e controlavam uma estrutura hierárquica rigorosa, dando a tônica da atuação. Alguns líderes eram filhos ou os próprios coronéis. Descendentes de membros da Guarda Nacional e de latifundiários também lideraram o cangaço. Outros eram, ainda, aliados da elite local, mesmo que inimigos de outros políticos e fazendeiros, ou seja, a grande motivação para a entrada no cangaço vinha de disputas entre famílias e/ou políticos locais: a morte de um parente ou de um aliado era a porta de entrada para a efetivação da vingança. Não havia propriamente um motivo social para a defesa da população pobre contra os coronéis. Ao contrário, os cangaceiros viam a massa anônima como seus “empregados” e, reciprocamente, estes os enxergavam como “patrões”. Há um relato instigante, onde pessoas de populações paupérrimas atravessavam quilômetros, a pé, em direção às cidades, muitas vezes vendendo a roupa do próprio corpo para comprar o que comer, pois preferiam ficar literalmente nus (e passar por essa vergonha), do que aliar-se a bandos do cangaço para conseguir melhores condições de sobrevivência. Isso porque os cangaceiros eram capazes de atos de extrema crueldade em relação a qualquer pessoa, e, portanto, também em relação aos pobres. Isso causava medo. Importante ressaltar, no entanto, que também existiram atos de extrema generosidade em relação aos pobres, mas essa não era a tônica, simplesmente pelo fato de que essa não era a motivação que mobilizava a entrada no cangaço. Enfim, não se procurou construir uma base de apoio popular real entre os bandidos e o povo.

Na continuidade dos capítulos (aspectos militares, questão racial, Prestes e Lampião, comunistas e cangaço etc.), vai ficando perceptível ao leitor que Pericás não contesta apenas uma das teses mais difundidas sobre o cangaço (a que difunde uma visão homogênea do Nordeste), mas também a visão de que o cangaço seria a representação de uma manifestação pré-política e inconsciente. Esta tese advoga que os cangaceiros não tinham um viés revolucionário, e nem um viés conservador/institucional. Mas o autor – nos capítulos “Relações sociais e estrutura dos bandos” e “Mulheres e crianças no cangaço” demonstra que, a despeito de um viés específico de atuação, os cangaceiros não estavam desprovidos de consciência política. No entanto, o cangaceirismo apresentou um paradoxo muito interessante: não reproduziu, de forma idêntica, as relações de dominação vigentes. O “soldado raso” e o “comandante” viviam da mesma forma no cotidiano dos bandos, comiam a mesma comida, dormiam no mesmo chão. O mesmo acontecia com mulheres, crianças e, até mesmo, os cachorros, tudo contribuindo para uma combinação de família, comunidade sertaneja, emprego e organização militar. No tocante às mulheres, embora sempre em papel secundário na sociabilidade do cangaceirismo, observou-se um papel de maior destaque, se comparado à mesma estrutura dos lares tradicionais, à época.

Portanto, além de polêmicas, as teses demonstradas por Luiz Bernardo Pericás inovam no mínimo em três dimensões: na interpretação propriamente dita do cangaço, na pesquisa estruturada em fontes originais e na forma de expor os resultados da pesquisa, onde cada capítulo dá vontade ao leitor de continuar, num único fôlego, até o fim, seja pela concordância, seja pela negação do que está ali defendido. A obra abre espaço para novos debates e ricas discussões sobre um assunto que ainda atrai paixões e ódios.

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Angélica Lovatto é professora da UNESP-Marília, doutora em Ciência Política pela PUC-SP e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais (NEILS/PUC-SP) e Grupo Estudos Cultura e Política do Mundo do Trabalho (Unesp-Marília).

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